segunda-feira, 10 de setembro de 2007

Mondovino

Bordeaux, Napa, Florença, Toscana, Cafayate e, até mesmo, Pernambuco foram algumas das regiões visitadas por Jonathan Nossiter que montou, a partir dos caminhos do vinho nessas diferentes terras, um filme sobre a globalização não só dos sabores, como do mundo.
Mais do que um documentário sobre vinhos, este é um filme sobre a complexidade das relações humanas, a industrialização, a política e a guerra entre a diversidade e a padronização da produção de bens de consumo.
Histórias de grandes vinicultores como a família Mondavi (Califórnia) e a família De Montille (França), do consultor Michel Rolland e do crítico Robert Parker, entre outras, alguém a mostrar a dificuldade de cultivar as características típicas dos vinhos das diferentes regiões do globo. Na batalha entre local e multinacional; pequenos produtores versus grandes industriais; vinhos de terroir versus padrão internacional; apontar heróis ou vilões é uma tarefa mais difícil do que se imagina...

O GENIO DAS GARRAFAS
Robert Parker, o mais influente e temido crítico de vinhos do mundo, faz previsões para o setor, admite lacunas no guia que publica e diz que seu tinto preferido é o francês Château Haut-Brion
Acima do peso, com o andar desajeitado, vestindo a indefectível camiseta pólo azul-marinho e com os cabelos no limite do desgrenhado, Robert Parker surgiu pela porta principal do restaurante Daniel, em Nova York, dez minutos antes da hora marcada. Retribuiu ao agradecimento inicial pela entrevista com golpe de mestre: "Eu é que sou grato por sua revista se interessar em me ouvir". Pura modéstia. Aos 58 anos, este americano nascido numa fazenda em Baltimore, no Maryland, é o mais influente e temido crítico de vinhos que jamais existiu. Faz a fama ou a desgraça de uma vinícola em questão de segundos. Cheira, prova, cospe (seja qual for o vinho), escreve um pequeno comentário e emite a sentença na forma de pontos, de 70 a 100. Sua opinião é suficiente para esgotar ou encalhar uma safra em qualquer país.A simpatia, o entusiasmo ao falar de vinho, a falta de afetação em seu jeito e um bom humor típico de quem enxerga a vida por uma ótica divertida não deixam dúvidas: Parker é um felizardo. "Faço exatamente aquilo que gosto", diz. E o que ele gosta é de tomar vinho - e escrever sobre as qualidades de sua bebida preferida, em comentários curtos e objetivos publicados em seu jornal bimensal, The Wine Advocate. Também contribui esporadicamente para algumas revistas, como a americana Food & Wine. Já publicou dez livros. Seu guia Parker's Wine Buyer's Guide, um calhamaço de 1 635 páginas, já foi traduzido para diversas línguas, do francês ao japonês. Quando aprecia, não mede elogios. Mas é implacável se a bebida o desagrada. Diz que faz isso em nome dos leitores. Bom vinho, como define, é aquele que tem a habilidade de satisfazer o paladar e o intelecto: prende o interesse do degustador, oferece aromas intensos e sabores sem peso. E, sobretudo, parece melhor a cada gole. Além disso, deve ter personalidade singular e aprimorar com a idade. Não é pouco.
Parker tem uma capacidade de trabalho espantosa. Prova entre 100 e 120 vinhos por dia, de segunda-feira a sábado. No domingo descansa - só toma vinho por prazer! Essa rotina se repete há 26 anos. Faz suas degustações no escritório, instalado na casa onde vive na pequena Monketown, perto de Baltimore. Quando está viajando para as regiões vinícolas, em geral prova os vinhos no hotel. Passa três ou quatro meses por ano longe de casa. Só não pisa mais na região francesa da Borgonha, onde os produtores lhe são hostis. Ali quem faz as avaliações é seu assistente, o franco-americano Pierre-Antoine Rovani. Já em Bordeaux, Parker aparece duas vezes a cada safra para repetir a célebre maratona de provas. A última visita aconteceu em 27 de março (dois dias depois da entrevista a Gula). O ritmo dos testes só é suportável para alguém fora do comum como ele. Na parte da manhã, quando está em sua melhor forma, dedica-se aos vinhos mais tânicos e complexos; termina o dia com os brancos, "mais simples". Jamais bebe durante a degustação. Segundo ele, isso prejudicaria sua percepção.Antes de viajar, Parker dispara fax para as vinícolas que lhe interessam, indicando o que deseja provar. Os produtores se apressam em enviar as amostras para que ele as teste no hotel - como gosta, em absoluta solidão. Entre um vinho e outro, limpa a boca com água mineral gasosa. Na época das provas, evita comer alho e tomar café para não comprometer o paladar. Mantém o perfeito funcionamento do nariz, segurado em US$ 1 milhão, com um expediente simples: solução salina natural. Antes da degustação, pinga algumas gotas para limpar e umedecer as narinas. "Estou certo de que 80% da degustação é olfativa", afirma. Ele simplesmente aproxima o nariz do copo para saber se o vinho é bom. Quando seu olfato indica que a bebida não vai obter 80 pontos, despreza-a sem colocar na boca. Costuma dizer que já sabe pelo aroma quando um vinho vai alcançar a nota máxima de 100 pontos. A força de Parker vem de uma combinação ímpar de olfato e memória. Ele é um fenômeno, capaz de identificar milhares de aromas com incrível precisão e catalogá-los na mente. Herdou esse sentido privilegiado de seu pai, um fazendeiro de laticínios que virou negociante de máquinas. "Quando era jovem, costumava caçar com meu pai", conta. "Ele podia cheirar o almíscar dos animais, de longe." E aproveita para repetir a história célebre: "Toda vez que eu comia alho, bastava entrar em casa e meu pai reclamava". Parker diz que sempre teve olfato apurado. Lembra que, quando ainda era estudante de Direito e começava a se interessar por vinhos, costumava andar pela rua tentando sentir todos os cheiros possíveis - do lixo ao asfalto quente. Guardava tudo na memória. "Não vou me estender em detalhes, mas comecei a perceber que tudo tinha um cheiro e, além disso, mesmo coisas muito parecidas apresentavam diferenças no aroma - por exemplo, o champignon Portobello tinha um cheiro, o cogumelo Paris, outro..."Durante as degustações profissionais, Parker fica em absoluta concentração. Diz que assim se habilita a julgar um vinho sem deixar que nada, além do aroma, sabor e corpo, interfira em seu veredicto. Ele garante que jamais esquece as características "de todos os vinhos" que provou. Mas, além de tudo, acredita que seu poder emana da independência. Seu jornal não tem anúncios. Sobrevive exclusivamente das assinaturas, que custam US$ 50 por ano. Ele paga as próprias viagens. Não aceita vinhos de presente - embora considere que não é antiético receber em seu escritório amostras não-solicitadas. "Compro 75% dos vinhos que provo", calcula. Dependendo do caso, adquire caixas inteiras para poder acompanhar a evolução da bebida. Já declarou que gasta por ano cerca de US$ 60 mil entre tintos e brancos. Possui aproximadamente 20 000 garrafas armazenadas em sua casa, onde construiu três adegas climatizadas. Segundo ele, boa parte desses vinhos está na categoria classificada entre 80 e 89 pontos. Parker não especula financeiramente com vinhos - embora todo mundo o faça a partir de suas notas, o que o deixa furioso. Cultiva, com orgulho evidente, a fama de ser incorruptível, implacável e incansável.Há 14 anos, além de crítico, Parker se tornou igualmente um produtor de vinhos. Mantém, em sociedade com o cunhado e um terceiro sócio, a vinícola Beaux Frères, no Willamette Valley, no Oregon, dedicada exclusivamente à produção de Pinot Noir. Não faz avaliações públicas nem confere notas a seus rótulos: The Beaux Frères, The Upper Terrace e Belle Soeurs. O site da vinícola (
www.beauxfrères.com) exibe a pontuação obtida pela revista americana The Wine Spectator. Quem cuida do empreendimento é o cunhado, Michael Etzel, mas a filosofia que impera ali é aquela que Parker defende: uvas muito maduras e vinhos frutados, feitos com a menor intervenção possível do winemaker; e armazenamento de 12 a 14 meses em barril de carvalho francês, com proporções alternadas de madeira nova. Diz ser a receita da Borgonha.Foi graças a uma frase, encontrada num guia inglês, que o então advogado Robert M. Parker Jr. decidiu se tornar crítico de vinhos. O texto dizia mais ou menos o seguinte: "...é uma linda dama, nos últimos dias de sua vida, talvez com um pouco de maquiagem em excesso, porém em quantidade insuficiente para esconder suas rugas". Ele leu. Releu. E ficou sem saber se deveria ou não comprar o vinho. Andava fascinado pela bebida e tinha se tornado um devorador de livros sobre o assunto. Mas esgotara sua paciência para notas de degustação do gênero "um toque de couro russo", ou "este vinho evocou em mim..." Estava com 31 anos, era fã de Ralph Nader (o famoso defensor dos direitos do consumidor nos Estados Unidos) e, depois de três anos amadurecendo a idéia, sentiu que havia chegado a hora de escrever sobre sua bebida preferida. Faria isso como um advogado do comprador. Trataria o vinho "como qualquer outro produto de consumo". Parker começou a apreciar vinhos em 1967, em sua primeira viagem à França, durante as férias da Faculdade de Direito. Tinha ido visitar a namorada Pat, que estudava francês em Estrasburgo. Com 20 anos, era abstêmio - basicamente porque não gostava de cerveja, a bebida-padrão de seus amigos de Baltimore. Na França, descobriu que o vinho era saboroso. Deixava-o num estado agradável e, naquela época, custava menos que Coca-Cola. Passou seis semanas tomando vinho em toda refeição. Ele gosta de repetir que voltou para casa encantado com a bebida, a comida e a namorada, com quem se casou e vive até hoje. Logo formou uma confraria informal com colegas da faculdade e mergulhou de cabeça no tema. Por muitos anos, aproveitou as férias para ir à Europa com a mulher, visitar as regiões produtoras. Pat o acompanhava, como tradutora, até que ele acabou aprendendo a língua oficial do mundo enófilo. Ou melhor, oficial, até a chegada dele, como se costuma dizer, pois o advento Parker tornou o inglês "obrigatório" para enólogos e proprietários de vinícolas. Em 1978, com US$ 2 000 emprestados pela mãe, Parker imprimiu 6 000 exemplares do primeiro número de um jornal de vinho revolucionário, que na época batizou de The Baltimore/Washington Wine Advocate. Comprou o mailing de clientes de lojas importantes e distribuiu gratuitamente as primeiras cópias de sua publicação. Na edição seguinte, contava com 600 leitores pagantes. Hoje, são 40 000 assinantes em mais de 40 países e o jornal de 56 páginas tem uma versão em francês. A primeira safra profissional de Parker foi o Bordeaux 1982. Ele a classificou de monumental. "Na época, os críticos diziam que aquela safra tinha o estilo do Novo Mundo, que os vinhos teriam vida curta, até 1999, no máximo", lembra. "Passaram-se 26 anos e os Bordeaux de 1982 continuam bons, aliás, alguns deles - como o Lafite-Rothschild e o Mouton-Rothschild - ainda são jovens", avalia, sem esconder uma pontinha de sorriso nos lábios.

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